sábado, 20 de junho de 2009

Lição de casa


- Três contos do livro Cadeiras Proibidas - Ignácio de Loyola Brandão - se reúnem nesse texto, num novo contexto, mas com as mesmas características. São eles: "A menina que não queria atravessar a rua", "O homem do furo na mão" e "O homem cuja orelha crescia".




Vila Maria é uma pequena cidadezinha do sul do Brasil onde paira um cenário europeu da década de 60. Os senhores andando bem alinhados e as senhoras sempre com o 'rouge' as representando. Crianças brincam alegremente pelos parques com folhas de outono espalhadas pelo chão, e adultos levam uma vida corriqueira de trabalho, mas sem a correria dos dias atuais.

Nesta vila resido eu, Clarice, que como toda mulher adulta, realizo meu trabalho e estudos com muita habilidade e sou sempre bem vista por minhas roupas elegantes. Hélcio é um adolescente que sofre mutações, como todos, mas uma em especial. Quando pequeno, sua mãe o avisara do distúrbio que possuía na orelha, porém nada tinha se manifestado até seus 17 anos. Ao completar tal idade, o que parecia profecia, se cumpriu: metros de carne cresciam da orelha de Hélcio, que só não se desesperava mais, porque tinha encontrado um gorro que suportava o tanto de carne que crescia a cada dia.

Tiago andava pelas ruas com certo receio, e as pessoas com o mesmo sentimento por ele. Olhavam, não enchergavam, mas sabiam que algo de errado acontecia com ele. Por usar luvas de vez em quando, o furo na mão de Tiago não aparecia muito, mas sua cara de estranheza espantava a todos. Apesar de gostar de seu 'defeito', sabia que para os outros, aquilo era perfeitamente inconcebível, então se resguardava.

No feriado de Páscoa, eu e esses dois seres até então estranhos, estávamos tomando nossos cafés da manhã, cada um em uma mesa, solitários. Eu não ligo, sempre fui assim. Saindo da padaria, os três solitários pararam no semáforo, que logo abriu. Um atravessou e outro insistiu em me ajudar. Não queria! Gostava daquele lugar e ali queria ficar, oras!

- Vamos, eu ajudo a senhora.

- Onde tem uma senhora aqui, rapaz?

- Desculpe-me, TE ajudo a atravessar. Apesar de estranho, não ofereço perigo.

- Não confio em pessoas com carne de orelha nos gorros.

- Mas na cidade só eu sou assim.- Pois então, não confio e nem quero sair daqui.

- Por que será que ninguém nunca quer ao menos conversar comigo?

- Acho que é por que você é estranho.-

Mas eu não sou! A única parte estranha é minha orelha!

- Isso já basta para fazer de você uma pessoa estranha. Aposto que não tem hábitos muito bons. Mas chega, atravesse a rua que eu fico aqui. Até logo.

- Não tenho não! Eu como, durmo, estudo e tento trabalhar como todo mundo que aqui está. E não vou atravessar a rua até que a senhora vá.

- Senhora, não! E pode esquecendo que daqui eu não saio.

Ao ver a discussão do outro lado da rua, Tiago que estava sem as luvas me chamou com aquela mão furada para atravessar, resolveu aderir ao movimento do orelhudo.

- Pois não vou! Podem me deixar em paz?
- Por que quer ficar aqui? – dizia Hélcio
- Por que quer me tirar daqui?
- Moça..
- Clarice!
- Clarice, pare com esse comportamento infantil!
- Não é infantil, olha bem pra minha cara de quem é criança!

Agora no mesmo lado da nossa calçada, Tiago interferiu:

- Ela está certa, não é criança. É adolescente.

E antes que eu falasse o primeiro nome feio que veio à minha cabeça, o mocinho da mão furada completou:

- Os adultos só são a capa. Somos e sempre seremos eternos adolescentes, nos transformando e procurando coisas novas, aprendendo e nos surpreendendo cada dia mais com as pequenas coisas que acontecem. E claro, tendo as mesmas atitudes dos que tem espinhas na cara: birra, marra, medos, proteções ásperas, temperamento difícil. Portanto, não vejo estranheza na atitude desta menina, que mais parece uma mulher de quarenta e poucos. Vamos, Hélcio, quando ela quiser, atravessa.

- Como sabe meu nome? – indaga Hélcio

- Vi na comanda da padaria.

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